11 de abr. de 2020

É A VEZ DELES

E, subitamente,
Os pandas voltam a acasalar em um zoológico de Hong Kong
As ovelhas brincam no parquinho, em algum lugar no País de Gales
Os peixes voltam a se banhar nos canais de Veneza
E os alces tomam as ruas do bairro inglês,
se rindo um pouco
daqueles exóticos humanos
enjaulados
As flores abrem os olhos,
mas não veem ninguém
e sorriem sem fotografias
no meu imaginário de primavera
(folhas amarelas se atiram pela janela
em algum lugar do hemisfério de outono)
Parece que o céu respira
ou solta um pum
Não se sabe ao certo a razão do barulho
As pessoas olham mais para o céu,
porque só têm o recorte de suas janelas
Então percebem umas luzes estranhas
e vestem seus trajes apocalípticos de Google
Pessoas criam teorias
sobre extraterrestres
e fim do mundo
por não saber lidar com a falta de controle
sobre o mundo
sobre a morte
sobre a solidão
Pessoas criam teorias
sobre mudanças magníficas
após a catástrofe
para apaziguar
seus corações feridos
seu luto contido
entre quatro paredes
toda essa dor apertada
em apartamentos
todo enterro rápido de caixões lacrados
e sem entes queridos
Aquela imagem macabra de centenas de covas abertas
que parecem estar esperando por nós.

As árvores continuam
se balançando ao vento
e os pássaros cantando
e isso é tudo o que a minha janela
recorta do mundo.
Talvez também se riam um pouco
da minha exótica figura na gaiola
empoleirada nesse banco de madeira
atrás das grades da varanda
Uma fatia de sol no café da manhã
Chá de gengibre com hortelã e mel
Penso em todos os pandas acasalando no globo
enquanto não me imagino mais
sequer beijando uma boca
- É a vez deles!, penso. Tá tudo certo.

Talvez alguns animais
voltem a reabitar o planeta
enquanto nos recolhemos
amedrontados e tristes
Talvez haja mesmo um cessar-fogo
nas regiões em guerra
para ajuda humanitária
- e se uma criança não for bombardeada
e outra não morrer de fome,
já será um alívio e tanto!
Mas há demissões em massa
e muitos pratos vazios sobre a mesa
Não tem cessar-fogo na Amazônia
Não tem cessar-fogo
nem dentro de casa
onde aquela médica italiana
foi assassinada
Mas há também lençóis brancos
Panelas, chocalhos e gritos
Canções
Aplausos
Pendurados nas janelas
As janelas começam a falar um idioma próprio
Viraram enormes bocas
e gritam e cantam
e querem devorar
e beijar e lamber, fazer sexo oral
São bocas de prazer
Bocas de dor
As janelas são as bocas que trocam fluidos com o mundo
quando nossas próprias bocas já não podem mais
cobertas por máscaras e medos
Bocas contorcidas
que gemem e riem
em desespero
e conversam com as paredes
e bebem água, chá e suco de limão
e querem parar de fumar,
mas fazem biquinho no vazio
esperando pelo filtro do cigarro que lhes é negado
- ou não
(são bocas, narizes, olhos e mãos –
tudo o que tem que ter precaução –
canais para 4 sentidos)

O ar começa a se limpar um pouco
da fumaça das coisas
E justo agora
se compromete
justo a nossa respiração
Mas as ovelhas se exercitam no parquinho
e certamente respiram melhor
- É a vez delas, penso. Tá tudo certo.
As ovelhas não passam mais frio
com seus casacos de lã
Nem as vacas, com suas jaquetas e botas de couro
Ao menos em parte
acreditamos nisso
Queremos crer
que a Terra parou
para que as ovelhas possam brincar nos parquinhos
e será divertido
E para que os pandas possam trepar
e será prazeroso
E para peixes enamorados
passearem pelos canais de Veneza
E para os alces passearem
pelos jardins do bairro
nas tardes de sol
Que não é só por medo
Que não é só angústia
Que não é só tristeza e desamparo
UTIs lotadas, covas abertas
Nosso imaginário de corpos empilhados
Nosso imaginário de afogados

Lavo mais uma vez as mãos
E todas as embalagens dos produtos do mercado
Tenho agonia de esbarrar nos casacos
que ainda vão para as ruas
e se avolumam pendurados no corredor do banheiro
Atravesso de lado - caranguejo desconfiado
Lavo mais uma vez as mãos
E todas as torneiras e maçanetas
os interruptores a e as alças das gavetas
Mais uma vez, as mãos
Vivo cada vez mais confinada
ao quadrado do quarto
e mais uma vez lavo as mãos.
Mas os alces passeiam juntos
nessa linda tarde de sol.
- A vez deles. Ok. Tá tudo bem.

Doces sonhos de solidariedade mundial
se dissolvem
em carregamentos desviados
de máscaras e equipamentos hospitalares
fronteiras fechadas
imigrantes ilegais morrendo à míngua
“Farinha pouca, meu pirão primeiro”,
como se diz em bom brasileiro.
E toda essa preocupação com o que será do futuro
do dinheiro
Respiradores para uma cédula de 100
e que morram os velhos afogados!
(desafogando a previdência social)
Um teatro do absurdo se apresenta
nos palcos do mundo.
O eixo da Terra se desloca
é dentro da minha cabeça.

Mas os peixes enfim respiram
nos canais de Veneza.