22 de nov. de 2018

A CASA DE ARARUAMA NÃO EXISTE MAIS


Eu tive um sonho recorrente
durante alguns anos
(com pequenas variações)
Arrumando malas
na casa de praia da minha infância
(que já não existe há muito)
pra voltar pra casa
Mas conforme vou arrumando
percebo que eu tinha levando
literalmente
a casa inteira
Todos os livros da estante
e a estante
Todas as roupas das gavetas
e as gavetas também
Vou tentando organizar tudo
no porta-malas do carro
e é claro que não cabe
E ainda faltam algumas malas
e os cabides do armário
e os livros, meus deus,
são muitos livros!
E ainda tenho que desmontar a estante
e o carro já vai partir
não vai dar tempo
Não vai dar pra levar de volta
tudo o que eu trouxe
O carro dá a partida
Angústia
Eu vou? Eu fico? Não posso deixar minhas coisas.
Acordo sempre aí.
Estou sempre arrumando as malas
desesperadamente
mas nunca chego a partir
nem a ficar
Ouço o ronco do motor
Mas o carro ainda não saiu do lugar
Por cerca de 1 ano e meio
não tive mais esse sonho
Como sempre,
tento fazer minha própria interpretação de sonhos
Que tinha a ver com meu desejo de morar fora
A impossibilidade de levar tudo
o que me é importante (meus livros!)
Estar longe da família (sair da casa da infância)
Enfim,
estava certa de que após morar em Copenhague
essa recorrência angustiante de imagens no meu sono
estava encerrada
Mas há alguns meses voltei a ter o mesmo sonho.
Penso que, da próxima vez, devo
pelo menos levar boa parte dos meus livros
me encaixar na mala
largar as prateleiras e cabides
vazios para trás
E chorar feito criança
porque a casa da infância
não existe mais.
O carro deu partida
Eu trouxe coisa demais
que não tem volta
Eu sabia que era só para passar
um fim de semana
Não cabe tudo, não dá tempo de arrumar
Acordo.
Dormirei mais tranquila depois de embarcar?

20 de nov. de 2018

NAS MESMAS MALAS


Meus olhos sempre passam de relance
sobre as malas empilhadas
em cima do armário
Nenhum pensamento me salta
nesses momentos

Olhos cruzam de relance
com paredes brancas manchadas
televisões ligadas sem ninguém ver
louça amontoada na pia
formigas enfileiradas no azulejo da cozinha
brinquedos de criança no chão da sala
livros nas prateleiras
roupas no varal
ímãs de geladeira
o tempo todo
e isso
não quer dizer nada

O estranho
é que meus olhos passem
por tanta coisa
Enquanto eu continuo
empilhada em cima
do armário.


18 de nov. de 2018

OLYMPIKUS SEM ASAS


Os velhos tênis de corrida
querendo sempre se pendurar
nos fios de alta tensão

O silêncio dos cisnes
de todas as tardes                       
Nossa cumplicidade de moradores do lago
que congela
Talvez embaixo do bloco de gelo
a cada inverno
aguardando qualquer mísero derretimento
para respirar

Pegar um voo barato pra qualquer lugar
Migrantes, nômades
Um cisne de asas cortadas
Patinho feio, pobre,
Latino-americano
(Meu balé é um belo pancadão – até o chão)
Me derreto por qualquer bobagem
Picolé de verão

Todas as pontes sobre os canais daquela cidade
Travessias, ligamentos,
convite ao salto
- até isso pode parecer bonito
pra quem tem poesia no lugar
de um coração

Deixa virar pedra
e esculpe
um monumento em praça púbica
Triunfalmente sentado
sobre um jegue
empunhando um abacaxi
- “Meme ou morte!”

Nem em matéria de poesia
a gente se leva a sério
Nem de coração

Rir é bom
e nem sempre eu ria por aquelas ruas frias
Mas quem está rindo agora?
Viramos um povo triste
com os dentes expostos
como uma caveira
Ou nem isso –
Aqui,
nem fóssil humano antigo
resiste.

Por que eu deveria?

Meu museu é a rua.
Estou exposta
com uma mala roçando no calcanhar
sem ter onde chegar

Aqui, entro e fecho o zíper.
Respiro menos que num lago congelado.

Um desses balões de gás hélio
que minha sobrinha ganha
em todo passeio no Campo
a cada fim de semana
Coloridos, incríveis, nas suas mãos,
seu encantamento!

Só murcham se ficam presos no apartamento.
Se somem no céu,
serão sempre lindos
Como uma lembrança
Uma saudade
Uma língua estranha
que a gente aprende
só pela metade.

11 de out. de 2018

O TÍTULO DO ÁLBUM


Ouço Belchior na voz de uma mulher
Ando em busca de alguma poesia
(agora quero abraçar Daíra)
As ruas estão mais cinzas
As páginas dos meus cadernos
cada vez mais vazias
Não tem previsão de chuva
para os próximos dias
[tampouco tem sol]
Nada para lavar meus olhos
como se fossem lágrimas,
sem sê-las.
A garganta seca
A palavra anda um bocado estrangulada
Não só ela.
Quero abraçar todo mundo
que carrega esse estrangulamento no peito
Mas só abraço o travesseiro
Tem sido difícil atravessar o batente da porta
As janelas do Windows
atiram corpos numa vala
bem no meio da minha sala
(Nosso sangue ficou verde e amarelo
de repente)
O chão do apartamento já está cheio
Difícil ir até a cozinha beber um copo d’água
Estão caindo do teto sobre a minha cabeça agora
Tenho muito medo de ficar soterrada
Um corpo entre corpos
Falta de ar
Se eu acender uma vela agora,
o oxigênio acaba?
Sinto vontade de rezar
Mas pra que Deus, meu Deus?
E com essa garganta atada?
Durmo abraçada aos meus mortos
Tenho muitos travesseiros
Nenhuma oração, nenhum poema, nada
Só esse abraço caloroso num corpo frio
Hoje neva sobre o Rio
E já não tenho botas para andar no gelo
Hoje a primavera disse
que só chega depois
de depois de depois de amanhã
- e sabe-se lá quando é isso!
E eu ainda rastejo pelos canteiros
em busca daquela florzinha
pequenina, delicada,
um quase nada rente ao chão
- uma corzinha qualquer –
que em Copenhague eu chamava
de esperança.
Vejo a marca de uma bota
Esmagada,
não era uma flor.
Não quero esquecer meu sorriso no bolso
como tudo o que se estraçalha sem querer
na máquina de lavar.
Escrevo bilhetes para mim mesma
pela casa inteira:
“Não esqueça seu sorriso”.
Mas tá difícil!
A humanidade hoje sofre de um Alzheimer coletivo.
É como a tia Didi: vai morrer sem nem saber
- será que isso é um alívio?
Eu não quero esquecer, não quero esquecer!
“Não esqueça seu sorriso” – leio pela casa inteira.
Mas o que significa isso?

10 de jul. de 2018

AS TAMPAS E AS CANETAS


Às vezes, vou fazer arrumação
e encontro um monte de caneta sem tampa
e mais um monte de tampa solta.
Só que as tampas não encaixam nas canetas.
Aí eu me pergunto onde estão as canetas daquelas tampas
ou as tampas daquelas canetas
Ou se foi sempre assim e nunca notei
Ou se o tempo separadas as fez mudar de forma
Em que parte do caminho elas deixaram de encaixar?
Eu mesma me sinto uma tampa
ou uma caneta
dessas largadas na bagunça do quarto
dessas que eu nunca acho
ou estão sempre trocadas
ou mudaram de forma.
Não me encaixo
em nenhum lugar.
As canetas ainda servem
enquanto há tinta para gastar
em um poema
desses que tampouco servem para nada.
Mas a tampa,
o que fazer com ela?
Guardo tampas desencaixadas
por medo de ser jogada fora.
Tampas vermelhas ou pretas
quando só há canetas azuis
ou muito largas
ou muito estreitas
Tampas claramente perdidas para sempre
de suas canetas
estouradas ou gastas
em tantos poemas
Tampas modificadas
por tanto tempo
e tantas separações
que jamais encaixarão novamente
em nada.
Um dia ainda escreverei
só com as tampas.