24 de nov. de 2015

Você se veste de maestro
para reger o trânsito
desorientando os carros.

Eu vejo você assim,
de pinguim.

Eu também me lanço de barriga no asfalto.
Vamos deslizar no gelo da cidade
até derreter o último sorriso.

As buzinas não param.

Nossas batutas agora são varinhas mágicas
transformando todos os carros em abóbora.
Abóboras plantadas no engarrafamento são mais belas.

A avenida Presidente Vargas agora toda tomada por abóboras,
reivindicando seu direito ao baile.

De repente, uma chuva de sapatos sobre a Baía de Guanabara.
Milhares de sapatos são arremessados da Ponte Rio-Niterói,
porque é muito mais gostoso dançar descalço.

É verdade, eu estava lá.
Arremessei um par de sapatos rosa com salto de madeira,
muito bonitos.

Eu jamais deixaria de colaborar
com uma plantação de sapatos no fundo do mar.

12 de nov. de 2015

A (DES)RESPEITO DO TEMPO

Sinto na boca o gosto do atropelamento.
O tempo deveria ser multado por excesso de velocidade,
por avançar sinais vermelhos,
ultrapassar na linha contínua
e outras infrações de trânsito.
O tempo, sim, deveria ser parado na Lei Seca,
soprar sua embriaguez e ir preso.
O tempo é esse motorista grosseiro
que segue atrás de mim na estrada,
com a mão na buzina,
lançando o farol alto na minha cara.
Eu tenho um modo particular
de lidar com sujeitos desse tipo:
viro o retrovisor pro alto,
aumento o volume do rádio
e reduzo a velocidade.
E então esboço um leve sorriso
- por alguns segundos dominei o tempo.
O tempo está meu refém, e não o contrário.
O tempo andou apontando um revólver na minha cara,
e eu corri muito por medo do disparo.
Agora estou muito cansada,
e não cruzei nenhuma linha de chegada.
Vou parar de correr.
Vou me deitar no meio da estrada.
Vou olhar para o céu
- a gente nunca deveria deixar de olhar para o céu.
Andar no ritmo das nuvens,
e não no ritmo dos carros.
Assumir as formas fluidas das nuvens,
e virar coelho, chapéu, montanha,
um bombom sonho de valsa,
len...ta...men...te...
Já posso até sentir na boca um gosto de chocolate.
Virar chuva.
Um cheiro de terra molhada.
Já me esqueço do atropelamento
e permaneço deitada na estrada.
O asfalto quente vira grama, vira cama.
len...ta...men...te...
Eu viro gente.

7 de ago. de 2015

SOBRE PANELAS E PATRÕES

A burguesia de Icaraí descobriu a panela.
Afinal, a comida sempre lhe foi apresentada em baixelas
por suas empregadas.
Não é por falta de comida na mesa, é claro.
Mas certamente estão aproveitando a desculpa da crise
pra cortar os salários daqueles que lhes servem.
Esses, sim, sempre tiveram motivo para bater,
não com a colher na panela,
mas com a panela na cabeça do patrão.
Por que não?

4 de ago. de 2015

TENHO TIDO VONTADE

tenho tido vontade
de mandar currículo pra Globo
ou me jogar pela janela
- o que é quase a mesma coisa.
persigo mosquitos com uma raquete
e pinto as paredes do quarto
de um branco mais branco impossível.
são mil camadas de branco
até atingir o branco perfeito.
cada dia uma camada.
é o que me mantém viva:
as paredes.
não há mais chão
nem teto
então cravo as unhas nas paredes.
tenho tido vontade
de me inscrever
pra morar em Marte.
será que a NASA aprovará minha ficha?
anarquista
terrorista
artista
sei lá...
qualquer coisa com “ista” deve constar.
tenho tido vontade
de fazer artes marciais
- sei plantar bananeira.
[o que mais será que se pode plantar
no solo de lá?]
artes lunáticas
- só sei fazer isso.
tenho tido vontades
esquisitas.
[falta terra no meu mapa
astral]
tenho tido vontade
de virar picolé
ou desenho animado
- o que é quase a mesma coisa.
acho que vou me mudar pra Dinamarca
ou ter um filho
- ou os dois.
e virar picolé
- principalmente isso.
mas antes preciso aplicar
mais uma camada de branco
na parede do quarto.
depois eu mando currículo pra Globo
ou pra NASA
ou pra Walt Disney.

11 de jul. de 2015

PEGADAS NA PAREDE

tem uma árvore no meio da minha sala
e tem pegadas nas paredes
e os meus passos que já percorreram
todas as laterais
e o teto da casa
e essa janela gradeada
que me impede de voar
minha gata pulava pela jardineira da área
pro apartamento da vizinha
e arranhava quem tentasse reclamar
minha gata já teria destruído essa árvore
e as pegadas na parede
e o estofado do sofá
eu me comporto muito bem
vou me estirar no sofá
ligar a TV
e me esquecer de regar a árvore
cada coisa morre no seu tempo
se eu me esquecer das paredes
elas vão tombar
cedo ou tarde
enquanto eu vejo desenhos animados
onde nada morre para sempre

28 de mai. de 2015

DA SACADA DO GOETHE

essa noite vi dois personagens ilustres
da poesia brasileira:

do outro lado da rua
estava o homem revirando o lixo,
de Manuel Bandeira.
e do lado do amontoado de sacos de plástico pretos
despejados pela lanchonete da esquina,
havia um alto prédio sendo erguido.
lá em baixo, revirando o cimento,
o operário em construção,
de Vinícius de Moraes.

lado a lado,
sem se perceberem,
estavam
o homem devorando o lixo
e o homem revolvendo o cimento.
da sacada do Goethe-Institut
eu podia ver tudo.

o primeiro homem termina sua refeição
e cata um jornal em outro saco,
abre, dá uma olhada rápida,
e limpa as mãos.
o homem do cimento
ainda não terminou seu turno
- não observei se usava luvas.
continuo fumando meu cigarro
- revolver poesia não suja as mãos.

a fumaça entra carregada de uma estranha tristeza
nos meus pulmões
- como poderia o operário dizer “não”?
não há lixo para todos.
es gibt keinen Müll für alle.

“Arbeit macht frei”
nos campos de Auschwitz
quem poderia dizer “nein”?

eles caminham em silêncio para a morte,
enquanto eu aprendo a dizer o intolerável
em várias línguas:
soziale Ungleichheiten. 

a impossibilidade da poesia.


13 de abr. de 2015

DISFARCE

não precisa mais pular as janelas
como um salteador barato.
agora as portas estão abertas
e você simplesmente passa...
talvez já tenha até mesmo esquecido
a dor de atravessar as paredes
e o cheiro dos encanamentos enferrujados
em que a gente se enroscava.

guarda a sua loucura
numa caixa,
num cofre atrás do quadro,
tranca no armário,
nas gavetas,
no porta-malas do carro,
deixa a sua loucura de castigo
fechada no quarto,
engole a chave
e aguenta o peso do ferro no estômago.
(seu estômago já aguentou coisas piores, não é mesmo?)
mantenha a sua loucura bem segura
nesse potinho hermeticamente lacrado.

não se lembre de como era bom de um salto flagrar
um disco na vitrola, uma droga, um strip-tease,
de um salto a noite tirando seu vestidinho preto,
e a gente barrando a penetração do sol
com nossos óculos escuros e um doce desprezo.
nem lembre que toda janela saltada guardava surpresas.
e de como nos sentíamos super-heróis ao atravessar paredes.

esconda seus superpoderes,
se disfarce.
do outro lado da porta
são impiedosos com quem voa.

e é por isso que eu abro a caixa, o cofre, o armário, as gavetas, o porta-malas, o quarto e o potinho hermeticamente fechado.
ainda prefiro o cheiro dos canos enferrujados.

12 de abr. de 2015

BUNKER

tem uma boneca inflável convidando ao boquete
ornamentando o palco vazio

e o banco no fundo do bar que sempre me aguarda
como um esconderijo antibombas

eu e a garrafa de long neck nos fazemos companhia

o show não vai começar
o show já vai começar
não vai

aquela meia dúzia parada lá na frente fica olhando para o palco desabitado
- será que já enxergam algo?

tem essas duas meninas que ficam ali se revezando no balcão
fazendo pose para o celular
- já podem postar e seguir pra outro lugar!

tem esse PM chamado Rocha que faz a ronda noturna
e quer alguma coisa do dono do bar – o que será?
mas isso é só mais tarde.

agora,
sou eu fugindo
com os meus cigarros pela escada de incêndio
e com os meus incêndios pelo gargalo.

tem os que vão de dose dupla de caipirinha ou cuba
e permanecem bem dosados.

tem esses rocks que não me saem mais da cabeça,
e eu dançando enlouquecidamente entre as estátuas de pedra.

depois, [...]
tem o silêncio e o que eu não digo.

eu tenho sempre a sensação do perigo.
meu bunker no fim do salão,
as escadas de incêndio,
os incêndios,
uma marreta na mão destruindo as estátuas,
aquele riso no canto da boca de só quem entendeu a piada
desprezando a gargalhada de quem nunca entende nada.

por fim,
planejo ataques à geladeira do bar e à sua boca,
mas fico só com a saideira.

8 de mar. de 2015

NOVO ACORDO PORNOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Pela substituição da palavra “caralho” pela palavra “buceta” para uma calorosa expressão de surpresa:
- “Buceta, não acredito!”
- “Buceta! É sério?”
- “Buceeetaa... q merda!”

Pela extinção das expressões “filho da puta” e “puta que pariu” como xingamentos, que os filhos da puta merecem respeito bem como todas as putas que pariram. O nome do safado que engravidou a puta e caiu fora poderia ser usado como xingamento, mas esses filhos da... esses caras não deixam rastro. Podemos usar um nome simpático de apelo popular como “filho do Bolsonaro”. Mas vamos deixar os filhos de lado e extinguir esses termos, afinal, os filhos não têm culpa... se bem que os filhos do Eike Batista, do Cabral, do Cesar Maia, a filha do Garotinho... esse povo sabe fazer filho “filho da...”, “filho do Bolsonaro”!

Vamos precisar de um tempo de adaptação para fazer as novas expressões chegarem ao uso corrente. Você pode treinar no espelho todas as expressões de “buceta” – buceeetaaa..., buceta..., bu-ce-ta... – e os nomes de todos os pais de que os filhos herdaram a falta de caráter – filho do Cabral!, filho do Eike Batista, seu Thor!, cara, cê é mó filha do Garotinho... Mas de uma vez por todas, deixe as putas em paz! E lembre-se que “piranha”, como diz aquela música, “é um peixe voraz”.

Não “vá tomar no cu”, a menos que goste. Se gostar, tome muito no cu e goze. E “vai se foder” sempre que der vontade, por prazer, e com o consentimento de ambas as partes. Nunca se esqueça de que na língua portuguesa “não” é sinônimo de negação. No novo acordo pornográfico, “não” continua sendo “não”.

Galinhas e vacas devem ser libertadas dos abatedouros (para a felicidade dos veganos), e das adjetivações de mulheres. Galinha é galinha, vaca é vaca, mulher é mulher; e todas devem ser livres!

Chame uma mulher de “vadia”, mas deixe ela viver na vadiagem, em vez de impor uma dupla jornada. Trabalho, no sistema capitalista, é sempre trabalho escravo. Mire-se no exemplo de uma vadia de verdade, e seja vadio também. Paremos a produção! Sejamos todos vadias e vadios para o bem da humanidade!

Dizer que algo é “foda” continua tendo duplo sentido, dependendo da entonação. Pode ser ruim ou pode ser bom. Infelizmente não há regras para a foda. Exceto que “não” é “não”.

“Merda” continua sendo “merda”, porque toda cagada é fedida, embora muito natural, e saia igualmente de cus masculinos e femininos. Mas você pode incluir no seu vocabulário a expressão “cu é lindo!”, coisa mais poética que eu já vi numa faixa de manifestação, junto com “meu cu é laico” e outras do tipo.

“É meus ovo” é válido, mas se você for mulher, prefira a expressão “é meus ovário”. Ainda não tenho uma opinião formada sobre “escroto”, já que aquela coisa dependurada embaixo do pau é mesmo meio escrota. Deixo aberto o debate.

Exemplo de diálogo com o novo acordo pornográfico para o uso do palavrão:

- Buceta! Aquele filho do Bolsonaro fez uma merda!
- Ah, deixa isso pra lá, vadia... Vai tomar no cu, vai se foder...
- Não! Agora não dá. Porra, tô Cabral da vida com essa história! Foi uma Eike sacanagem!
- “Porra” é meus ovário! Cê tá usando uma expressão escrota que ainda não foi debatida.


Deixo a porra esparramada no final do texto, porque não consigo achar nada que substitua adequadamente a abreviação “pô”. Mas lembrando que secreção por secreção, pô... nós temos a menstruação. Engole essa!

25 de fev. de 2015

OCUPA CORAÇÃO

É como se lançasse bombas de gás pra dispersar
Não se pode mais ocupar praças e coração por aqui.

Nos dias em que voavam bombas,
eu via os pombos desnorteados nos céus da Cinelândia
sem saber pra onde voar.

No silêncio, o pombo pousa,
e permanece muito tempo ali parado,
atônito.

Gente se acostuma com o gás
e para de lacrimejar.
Pombo simplesmente não entende.

Meu coração é um pombo
na praça de guerra.