DE QUANDO LAMENTÁVAMOS O DISCO ARRANHADO
Hendrix na vitrola
você na cabeça
e esse meu maldito gosto por coisas antigas:
Hendrix, vitrola, você.
vou quebrar o disco e destruir a vitrola
e o que eu faço com você?
o que eu faço com VOCÊ?!
vou deixar tocar mais uma faixa
a vitrola não tem culpa
Hendrix não tem nada com isso
vou deixar tocar todo o disco - lado A e lado B.
e o que eu faço com você? o que eu faço com VOCÊ?!
e esse disco arranhado saltando no peito
ACERTO DE CONTAS
preciso te
devolver teus chinelos
um ou dois livros
e essa faca que você esqueceu no meu peito
um ou dois livros
e essa faca que você esqueceu no meu peito
CARTA DO SÓTÃO
para Fernando Klipel
Não lembro
quando passei não sei quanto tempo trancada num sótão desconhecido. Era escuro
e empoeirado, como todas as coisas desconhecidas. Muitos objetos esquecidos de
sua utilidade ali repousavam. Não era um repouso tranquilo, mas um congelamento
de queda. As coisas se penduravam por um fio, umas agarrando-se às outras para
não cair, desesperadamente. Eu não estava presa, não. Era mais uma liberdade
poder se trancar no sótão, sabe. Eu era como aqueles objetos: esquecida de
minha utilidade, congelada no momento da queda, suspensa. E então eu era livre
como cada objeto que já não se pode usar. Livre como uma bicicleta quebrada. Como
um disco arranhado que se recusa a tocar. As coisas descartadas, esquecidas,
são as únicas coisas verdadeiramente livres no mundo. As que se rebelam contra
a sua função e conquistam o direito de não servir pra nada. Eu era muito
ingênua, meu bem, quando apontava pássaros e outros vôos e coisas com asas. Livre
de verdade é um isqueiro sem gás. Perder o gás não é a morte do isqueiro; não,
muito pelo contrário, é a sua libertação! A partir dali ele deixa de ser útil,
e começa a viver. Então eu fiquei ali trancada no sótão com coisas vivas e cada
coisa conversava comigo, me contava a sua história, de como começou a viver
quando conquistou o direito de não fazer nada. As coisas de que faltavam
pedaços me confessavam que, sim, sentiam falta dos pedaços partidos, sentiam
dor nas estruturas retorcidas ou algo do tipo. Mas um relógio sem ponteiros me
disse: – “é o preço que se paga para ser
livre”. E me disse comovido e orgulhoso: – “eu não marco as horas; eram elas que me marcavam”. E me disse isso
com uma lágrima parada nas 3 horas, 47 minutos e 3 segundos. – “Eu não marco as horas, eu sou livre”.
Mancando sobre meio ponteiro de segundo, mas com um sorriso firme. Foram horas
magníficas, essas incalculáveis, que passei na companhia desses objetos
obsoletos. Sei que você gostaria de conhecê-los. Você, que sempre me perguntou:
– “o que é ser livre?” E eu sempre
disse cada hora uma coisa, e você sempre fez diferente do que eu disse. E assim
fomos forjando liberdades. Mas meu bem, agora eu sei: a gente precisa ser como
uma mesa sem os pés. (E quando não há chão, quem precisa de pés?!) Um avião sem
asas, de turbinas quebradas, é mais livre que tudo. Os aviões quebrados
incomodam demais na grandiosidade da sua liberdade. Não podem ser trancados no
sótão, escondidos. Estão ali, exibindo descaradamente a sua liberdade à vista
de todos; triunfantes. Inúteis. Eu os admiro. No fundo sempre fomos mesmo
escandalosos aviões quebrados.